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Quando o poder vira abuso: o que a agressão de uma delegada contra um entregador revela sobre o Brasil

  • Foto do escritor: Karina Pinto
    Karina Pinto
  • há 5 dias
  • 3 min de leitura
Entregador checando pedidos sentado na calçada - foto: Divulgação
Entregador checando pedidos sentado na calçada - foto: Divulgação

Um vídeo que circula nas redes sociais nesta semana expôs uma cena lamentável que, infelizmente, tem se tornado cada vez mais comum no Brasil: a agressão verbal e física contra entregadores de aplicativo. O episódio ocorreu em Belém, no Pará, e envolveu uma autoridade pública. A delegada da Polícia Civil foi flagrada chamando um entregador de “vagabundo” e ameaçando prendê-lo, após ele se recusar a subir com a encomenda até seu apartamento em um condomínio.

Segundo nota divulgada pela ADEPOL (Associação dos Delegados de Polícia do Pará), a delegada argumentou estar com o pé machucado e exigiu que o entregador subisse. Ele, por sua vez, seguiu as diretrizes do aplicativo e da administração do condomínio, que orientam a entrega na portaria. O desentendimento rapidamente escalou, resultando em ofensas e abuso de autoridade. A Polícia Civil do Pará informou que abriu um procedimento administrativo para apurar a conduta da delegada.

Caso isolado?


Nos últimos dois anos, cresceram os relatos de entregadores sendo hostilizados, ameaçados ou mesmo agredidos fisicamente por clientes insatisfeitos ou arrogantes. Isso contrasta com o cenário vivido durante a pandemia, quando esses trabalhadores foram amplamente reconhecidos por seu papel essencial em manter a sociedade funcionando em meio ao isolamento social. Muitos deles colocaram suas vidas em risco para garantir que alimentos, medicamentos e suprimentos chegassem às casas de milhões de brasileiros. Foram, por um tempo, vistos como heróis.

O que mudou?


A relação entre clientes e entregadores se deteriorou em muitas situações. A falsa ideia de que “o cliente tem sempre razão” tem dado lugar a abusos de poder, preconceito e desrespeito. Agressões como a praticada pela delegada evidenciam o quanto o preconceito de classe e o autoritarismo ainda estão enraizados no cotidiano brasileiro até mesmo entre aqueles que deveriam zelar pela lei.

De acordo com o advogado eleitoral e vice-presidente da comissão eleitoral da OAB Piauí, Wallyson Soares, esse tipo de episódio revela um uso indevido da autoridade policial que fere diretamente os princípios constitucionais:

“Quando uma autoridade utiliza seu cargo para intimidar e humilhar um trabalhador, estamos diante de um claro abuso de poder. A legislação brasileira é clara quanto à proibição desse tipo de conduta”, afirma.

Além disso, há um vácuo regulatório. Aplicativos não obrigam os entregadores a subirem até os apartamentos. A entrega na portaria é o procedimento padrão, a menos que haja acordo entre as partes. Em várias cidades, inclusive, leis já proíbem que os entregadores entrem nos prédios, exceto em casos de pessoas com mobilidade reduzida. Ainda assim, muitos clientes insistem em desrespeitar essas regras, tratando os profissionais como empregados pessoais.

Wallyson também ressalta que o respeito à dignidade da pessoa humana deve prevalecer em qualquer contexto, especialmente quando se trata da atuação de agentes públicos:

“A função pública exige responsabilidade e equilíbrio. A autoridade que age com prepotência compromete a confiança da população nas instituições. É preciso dar exemplo, não impor medo”, conclui.

Não se trata apenas de um conflito pontual, mas de um reflexo da forma como a sociedade enxerga e muitas vezes os trabalhadores que exercem funções fundamentais, mas pouco valorizadas. Combater a violência contra entregadores é também combater o preconceito de classe, o abuso de poder e a normalização da humilhação cotidiana.

Enquanto isso, quem trabalha nas ruas segue sendo alvo de desconfiança, agressões e silêncios convenientes.

 
 
 

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